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Complexo de Cinderela

Ahhh, a menina que cresceu ouvindo que é uma princesa e espera o príncipe encantado! Se tem algo que me faz revirar os olhos é a mulher adulta que ainda acredita ser uma princesa e que exista um príncipe encantado. Se você ainda faz parte desse grupo, tudo bem, tá desculpada. Porque, pra mim, a culpa é da Disney e de Hollywood que fizeram a gente acreditar em perfeição, encontros mágicos e felizes pra sempre. Quem nunca sonhou ser possível a estranha da escola ficar com o capitão do time de futebol, não é mesmo? Ou encontrar aquele rebelde sem causa que é o maior amor debaixo da casca grossa? Tem ainda aquela propaganda antiga do Itaú que um rapaz fala pra moça que ela é a mãe dos filhos dele quando encontra ela no metrô. Hoje seria considerado assédio e machismo? Provavelmente.


Sim, somos vítimas da publicidade e do cinema, mas só continuamos vítimas se quisermos. É necessário ter a percepção do mal que algumas fantasias causam na vida real. Se você costuma usar a expressão “Levanta a cabeça, princesa, senão a coroa cai” pra se manter resiliente e lidar com as dificuldades e frustrações, ok, seu recurso, sem julgamentos aqui. Agora se vc realmente acha que é uma princesa e tem um príncipe à sua espera pra cuidar de vc, te salvar da bruxa (ou do dragão) e te fazer feliz pra sempre, recalcule a rota! Mesmo pq ser princesa nem deve ser lá essas coisas, a Megan Markle não quis, algo deve ter (talvez um monte de “tem que” sem sentido. Ouvi dizer que não pode escolher nem a cor do esmalte!). Até a Disney já mudou essa ideia de princesa. Vamos atualizar!


Mas, afinal, o que é o complexo de Cinderela?



Complexo de Cinderela é quando a mulher se encontra em conflito entre o desejo de ser cuidada e protegida e da necessidade de liberdade e autonomia. É a estagnação da energia realizadora, de sua potencialidade, mantendo uma ambivalência entre dependência x independência. Ao mesmo tempo que quer ser amada e cuidada, tem medo de ficar sozinha e ser responsável por si. É a ideia de que é mais fácil verbalizar a independência do que aceita-la genuinamente. Dá tilt, né?


Complexo de Cinderela é um conceito criado lá em 1981 pela Colette Dowling, em seu livro “Complexo de Cinderela: medo de independência das mulheres”. Foi um best seller, como vocês podem imaginar. No livro ela descreve o conteúdo inconsciente da mulher que vive buscando o príncipe que vai protege-la e salva-la das situações difíceis e da ansiedade causada pela vida. Acredita que uma vida mais feliz só é possível com um relacionamento perfeito, capaz de livra-la da carência e da solidão. E aí começa a busca incansável pelo homem ideal e os prejuízos pro desenvolvimento emocional equilibrado da mulher. Ao deixar de fazer o melhor por si mesma, acreditando que algo que vem de fora consiga transformar e melhorar sua vida, a mulher cria uma dependência psicológica e o desejo de ser cuidada. Viu o conflito formado, né? Porque isso não orna com a mulher contemporânea independente, com autonomia e inserida no mercado de trabalho, que faz e acontece sozinha. É uma busca em caminhos distintos e ao mesmo tempo: ser cuidada e ser dona da porra toda. É como viajar pra Austrália e pra Irlanda no mesmo voo (estar em dois lugares ao mesmo tempo): impossível. E nessa impossibilidade de ter tudo e ser tudo, a mulher pode acabar se tornando uma insatisfeita crônica já que nunca acha que encontrou o que merecia. Afinal, a Cinderela é sonhadora e sempre quer mais.


O conto da Cinderela traz elementos do inconsciente coletivo que ainda exerce grande influência no universo feminino. Você querendo ou não. Em algum momento, bateu um medo ou insegurança e você pensou como seria bom ter alguém pra te proteger. Ou pelo menos que seria mais fácil.


Ser Cinderela hoje não é fazer faxina e cantar com os pássaros. A Cinderela atual é aquela que espera (inconscientemente) por algo externo que mude sua vida. Aquela que, mesmo sendo inteligente, instruída e independente financeiramente, está sempre com falta de algo. E ela sente que esse algo só vai ser completo com a chegada do príncipe (de preferência, encantado e pra ser feliz pra sempre).


Mas de onde vem esse medo de independência, onde vive e do que se alimenta? Arquétipos! E história da civilização, claro e sempre. Se você gosta de Jung já sabe o que é um arquétipo. Se você não gosta de história, é só pensar que antes do feminismo, a maternidade era considerada o ideal máximo de realização da vida de uma mulher. A função social da mulher era ser esposa, mãe e dona de casa. Apesar de hoje já estarmos mudando esse pensamento, ele ainda respira sem ajuda de aparelhos. Afinal, ele foi construído durante muito tempo, tem raízes muito fortes. Vai demorar um pouco pra ele sumir.


Mas vamos aos arquétipos. Arquétipos são imagens formadas no/do inconsciente coletivo. No inconsciente coletivo vivem experiências dos antepassados. São vivências repetidas de diferentes pessoas, em vários lugares e tempos distintos. Ou seja, experiências que nós não vivemos mas estão vivas em nós. É um programinha que já vem no nosso HD e a gente nem sabe que tá lá. Os arquétipos são nossos modelos herdados. Por exemplo, se eu te perguntar qual a imagem que você tem de mãe, provavelmente será a mesma da maioria das pessoas: amor, carinho e cuidado. E essa mesma imagem pra diferentes pessoas é um arquétipo. Eles influenciam nossos sentimentos e comportamentos, são as lentes de como nos vemos e vemos os outros. Então, vamos pensar na Cinderela: boazinha, passiva, tolerante, bonita, boa filha, cuida da casa, a abençoada até fala com os animais! Essa imagem dócil e frágil à espera de um herói indica uma impossibilidade de enfrentar a realidade adulta, de reconhecer sua potência como mulher. Veja, Cinderela foi passiva até pra ir ao baile. Foram os animais que fizeram seu vestido. Quando ele foi estragado, ela fez o que? Chorou! Precisou da fada madrinha aparecer pra poder ir ao baile. Foi lá e tirou o príncipe pra dançar? Não. Ela esperou ser notada. Foi rebelde e ficou no baile após a meia noite assumindo as consequências? Não, foi embora correndo aceitando o que a fada mandou fazer. Ela foi buscar o sapato perdido? Não, ela ficou abobalhada apaixonada e esperou o príncipe bater à sua porta levando o sapatinho. E você aí que vai pra balada e espera o cara chegar, o cara mandar mensagem, o cara ter interesse, se identificou? E mesmo que vc não seja tão passiva, em algum lugar, em algum momento, vc pensa ou já pensou em como seria bom e mais fácil ter um príncipe batendo à sua porta, não? Pois é. Quem nunca? Ser mulher moderna empoderada cansa. E cansa por causa dos arquétipos femininos que temos enraizados em nós (querendo ou não, concordando ou não). Contos de fadas e mitos são recheados de arquétipos, por isso são fáceis de entender, se identificar e fazerem sentido.


Entender o mito também é importante pra entender arquétipos. Lá nos primórdios da vida humana, quando ainda não existia muito recurso intelectual pra explicar as coisas, surgiam os mitos - explicações naturais pra entender e aceitar o sobrenatural. Os mitos surgiram da necessidade humana de buscar soluções mágicas quando algo não pode ser racionalmente explicado. E um mito importante pra entendermos a imagem da mulher é o mito de Pandora. Não, não é da pulseira. Sim, é a da caixa. A maioria de nós conhece a expressão “abrir a caixa de Pandora” como é algo negativo, certo? Afinal, essa caixa contém todos os males do mundo. Mas o mito que deu origem à essa expressão, pode te deixar revoltada (ou confortada).

Era uma vez (ok, mitos não começam assim) um mundo sem mulheres, onde os homens viviam em harmonia, sem cansaço, sem envelhecer e sem sofrimento. Um dia, o ousado Prometeu roubou o fogo que era segredo e controlado apenas pelos deuses, e deu aos homens a possibilidade de controlar o fogo e modificar a natureza. Zeus ficou puto, e resolveu criar um castigo terrível pra humanidade. E criou a mulher. Essa mulher, Pandora, recebeu dons e características de todos os deuses. Era um partidão irrecusável. Mas Prometeu era ligeiro e recusou, suspeitando das intenções de Zeus. Aí, Pandora foi oferecida ao irmão Epimeteu, que, mais bobinho, aceitou. Pandora levou junto uma jarra bem fechada (a caixa) que continha todos os males físicos e espirituais do mundo (falei que Zeus tinha ficado puto). Mas Zeus não avisou o que tinha na jarra, só falou que não podia ser aberta em hipótese alguma. Então, Epimeteu guardou bem guardadinha, sendo vigiada por 2 gralhas bem barulhentas (o alarme que ele tinha). Eis que, Pandora curiosa, usou todo seu charme pra seduzir o marido e pediu pra ele se livrar das gralhas, que incomodavam ela. Feliz que teve o pedido atendido, Pandora e Epimeteu transaram, e ele caiu num sono profundo (qualquer semelhança, não é mera coincidência. Arquétipo, gente). Aí, lá foi Pandora dar uma olhadela rápida na jarra e, sim, liberou todos os males que atormentam a existência humana: doenças, guerras, velhice, mentira, ciúmes, roubo, ódio, etc. Vendo a cagada que fez, mas nem tão rápida, fechou a jarra a tempo de manter apenas o único dom positivo que tinha dentro: a esperança (não teria sido melhor deixar sair tb? Pra equilibrar? Enfim, é daí que vem “a esperança é a última que morre”). E esse é um dos mitos que explora a construção da identidade feminina, tendo a mulher como uma punição/castigo, curiosa, bela, sensual, dissimulada, destruidora e, não menos e importante e talvez mais marcante, culpada. Chocou? Eu também. Zeus macho escroto precisaria de muita terapia pra aprender a lidar com a frustração.


A mulher moderna é capaz de assumir responsabilidade por sua própria vida, podendo escolher ser mãe ou profissional, ou os dois. O jogo virou, não é mesmo? Mas a mulher continua não ganhando. O problema é que, agora, com os múltiplos papéis e acumulando funções e responsabilidades, a mulher tem que ser uma “supermulher”. E essa necessidade de ser super só enfraquece, pois junto dela vem a frustração por não dar conta de tudo, vem a culpa. Maldita culpa! Maldita Pandora!


E é por isso que é importante se (re)conhecer, perceber-se, identificar seus limites, habilidades e potencialidades. Estar consciente de quem é, do que quer e do que precisa (e do que não precisa tb!). Entender o que é nosso e o que nos foi imposto, o que existe e o que criamos, o que aceitamos e o que é inaceitável. Não tem certo nem errado, e sim o melhor e o que não é tão bom assim pra gente. Estamos sempre em construção.

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